A construção da prática pedagógica do professor: saberes e experiência profissional
Neste artigo, procuro compreender como a experiência do professor pode contribuir para a construção da prática pedagógica e como pode resultar na construção dos saberes do trabalho docente.
Como parte integrante de dissertação de mestrado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPI, cujo problema de pesquisa é saber como se deu a prática pedagógica dos professores do ensino fundamental da cidade de União/Piauí, durante o século XX, este trabalho discute "prática pedagógica", "saberes docentes" e "experiência profissional", para estabelecer um nexo entre eles na tentativa de perceber as interrelações desses aspectos, enquanto seus elementos mediadores.
Prática pedagógica e experiência profissional
Para chegar-se à idéia de prática pedagógica, faz-se necessária a compreensão de que não há uma prática sem teoria, nem o contrário, teoria sem prática, teoria sem conhecimento, visto que, para se conhecer algo, é necessário ter havido a prática de uma experiência anterior. É nesse sentido que há uma teoria pedagógica e uma prática pedagógica que são resultantes não só do acúmulo de experiências como também do campo perceptivo das interrelações que o professor vai acessando e das ações de estudo e de pesquisa que vai realizando. Trata-se, nesse sentido da dialética teoria – prática, na prática pedagógica docente, da intermediação que uma produz sobre a outra e vice-versa. É, na verdade, como explica Guarnieri (2005, p. 12):
Considerando-se a relação teoria-prática, nota-se que a prática mediatiza a relação do professor com a teoria, o que implica um movimento de superação de adesão acrítica às teorias e aos modismos pedagógicos. A teoria, por sua vez, mediatiza a relação do professor com a prática, podendo possibilitar o movimento de superação de uma visão exclusivamente pragmática do trabalho docente.
No interior desta investigação, a concepção predominante é de que a prática pedagógica competente, comprometida, edifica-se nesta dualidade bipolar, nesta indissociabilidade que caracteriza o fazer do professor, que marca a ação humana, como bem percebe Giesta (2001, p. 76):
A bipolaridade apresentada pelo conceito de teoria e prática coloca sempre presentes os dois elementos fundamentais da ação humana: o pensamento, teoria que informa o conhecimento, a paixão, a experiência; e a ação, prática sem a qual não se dá o ato educativo.
Dessa idéia se depreende que, à proporção que se vai construindo a prática pedagógica, novos conhecimentos, novas experiências vão a ela, desse modo, se incorporando e se transformando em trabalho docente.
O trabalho docente é mediado pela prática pedagógica que se constrói e se reconstrói com novos conhecimentos e novas experiências. Conforme Brito (2006, p. 51), "o pensamento do professor constrói-se, pois, com base em suas experiências individuais e nas trocas e interações com seus pares". É nesse sentido que os saberes docentes se incorporam à prática pedagógica proporcionando ao professor mais clareza e mais segurança para demandar, não só o ensino, mas também suas trajetórias de desenvolvimento profissional.
Nesse entendimento, uma questão subjaz: a experiência do professor e a experiência profissional se equivalem, têm o mesmo sentido? Ou devem ser entendidas de maneira diferente? Entendo que a experiência do professor, de alguma forma, contribui para a construção da prática pedagógica, uma vez que a experiência é algo que acontece ao professor. Para reforçar essa idéia, busquei apoiá-la em Larrosa (2002), quando ele diz que "a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca". Nesse sentido, reafirmo que a experiência não está diretamente vinculada ao tempo que passa, com tempo de serviço, mas com o que acontece ao professor no tempo de serviço. Nessa perspectiva é que se pode falar em experiência profissional.
É exatamente essa experiência que busco relacionar com a construção da prática pedagógica, através das histórias de vida de professores aposentados do ensino fundamental. O que acontece e o que se passa com cada um no exercício da prática docente, ou na sua trajetória escolar como aluno, servem para construir o caminho a ser percorrido pelo profissional. Para melhor compreensão dessa relação experiência e prática pedagógica, através do sentido etimológico que a palavra experiência traz, recorro, mais uma vez, a Larrosa (2002, p. 25):
A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pêra, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente "ex-iste" de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fará também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
É com esse sentido – de travessia e de perigo -, que lanço mão da experiência de professores aposentados do ensino fundamental para investigar como se deu a construção da prática pedagógica, no seu exercício profissional docente, em meados do século XX. Essas dimensões da palavra experiência, apontadas pelo autor em questão, só reforçam a noção de que a experiência profissional do professor, além de contribuir para a formação do saber experiencial, advém dos acontecimentos pessoais e interrelacionais. É com esse sentido que Veiga (2007, p. 36) se manifesta a esse respeito:
O professor estrutura, ao longo do processo de construção de seu percurso profissional, o espaço pedagógico que expressa o saber do seu ofício, criado no contexto de sua trajetória e que resulta de uma pluralidade de saberes: os saberes relativos às ciências da educação e das idéias pedagógicas, os saberes curriculares, relativos à seleção dos conhecimentos acadêmicos ligados ao ensino e os saberes da experiência, oriundos da sua prática profissional, construídos individualmente ou na socialização do seu trabalho.
Esse processo de construção do percurso profissional se dá em razão daquilo que acontece com o professor no contexto do espaço escolar onde atua. Dessa forma, não há como não relacionar a prática pedagógica do professor aos saberes que vai amealhando pela construção, pela aquisição, pela troca, ao longo do percurso da experiência profissional. E o resultado de tudo isso é a produção dos saberes da experiência. O que Pimenta (2002) define como saber da experiência reforça a idéia de que na construção da prática pedagógica não se exclui a experiência profissional.
[...] os saberes da experiência são também aqueles que os professores produzem no seu cotidiano docente, num processo permanente de reflexão sobre sua prática, mediatizada pela de outrem – seus colegas de trabalho, os textos produzidos por outros educadores. (PIMENTA, 2006, p. 20).
O que a autora afirma inevitavelmente converge para o que Ghedin (2002) estabelece em seu trabalho como sendo o saber da experiência o centro nerval do saber docente, no qual os professores transformam as suas relações exteriores com os saberes, relativizando-os com os aspectos interiores de sua prática. Para esse autor, os saberes da experiência são formadores dos demais saberes.
Diante da importância dos saberes da experiência e da experiência profissional para a construção da prática pedagógica dos professores, tendo em vista que a posse desses saberes contribui para a compreensão da formação contínua como um processo que parte da experiência de quem viveu e aprendeu ao longo de algum tempo de sala de aula, sendo o fundamento de uma educação viva, dinâmica, que evolui no dia a dia, que transforma cada momento em situação de aprendizagem.
Nesse trabalho de pesquisa, quando propus ouvir as vozes dos professores aposentados do ensino fundamental, busquei compreender a ressonância de uma vida profissional carregada, certamente, de marcas pedagógicas ocorridas no decurso da vida escolar desses professores. Vida escolar que não exclui, na vida do professor, a vida do aluno. Tudo isso vale dizer que o saber da experiência de um professor começa a partir do seu ingresso na escola como aluno, passando pelo que vivencia no dia a dia fora da escola e no trabalho docente de sala de aula.
A prática pedagógica, que é o fazer diário do professor, depende não apenas dos conhecimentos formais, adquiridos principalmente nos cursos de formação, mas essencialmente depende das observações diárias que o professor faz do seu próprio trabalho, dos seus alunos, da escola, da sociedade e da reflexão diária que impõe todo trabalho pedagógico. É nesse sentido que se apontam os saberes escolares, os saberes pedagógicos e os saberes docentes e, ainda, a experiência profissional como fenômenos que se misturam na atividade diária do professor, haja vista a definição dada ao professor, segundo seu papel e respectiva atuação:
O professor é definido como um ator, ou seja, um sujeito que assume sua prática de acordo com o sentido que ele mesmo lhe atribui, possuindo conhecimentos e um saber-fazer que são oriundos de sua própria atividade docente a partir da qual ele a estrutura e a orienta. (ZIBETE; SOUSA, 2007, p. 250).
Essa ideia de professor como ator me leva a acreditar que cada docente exerce um mesmo papel com interpretações e atuações pessoais, individuais, centrado no seu eu-pessoal e profissional. A partir daí se compreende que os saberes docentes, dos quais se apropriam os sujeitos, apresentam-se visivelmente influenciados e determinados pelo labor diário do professor. Labor no sentido que Monteiro (2006, p. 124) dá ao termo, ou seja, "uma atividade rica, pois tangencia a própria condição humana. Somos nós mesmos, com nossa idiossincrasia, em disputa, em polêmica, em labor com o outro".
Neste artigo, ressalto a importância dos saberes experienciais para a prática dos professores e para a sua formação, procurando caracterizá-los como aqueles saberes que sintetizam todos os demais. Não resta dúvida de que a apropriação destes saberes, segundo Mercado (1991), é parte ativa na construção dos saberes docentes que sustentam o trabalho pedagógico, já que os saberes que os precedem não são retomados em sua totalidade, mas estão mediados por uma atividade reflexiva de cada professor e pela experiência adquirida na prática.
Enfim, aponto caminhos para o fortalecimento da prática pedagógica, através do saber da experiência, acumulado na vivência e na sapiência do professor aposentado. Existem inúmeras formas de se promover a formação contínua dos professores, entretanto das pesquisas consultadas e empreendidas nos trabalhos acadêmicos, foram muito escassas as sugestões de utilização da experiência profissional de professores aposentados na formação de novos professores.
Entendo que o presente trabalho servirá para a análise de situações vividas pelos professores aposentados e para diferenciar os saberes que são construídos no decurso da prática pedagógica, como, também, para despertar a escola e todos que nela atuam, assim como a sociedade mais ampla, para que possam perceber o valor e os saberes que residem na experiência e na vida de professores aposentados.
Portanto, utilizando as palavras de Mercado (1991, p. 69-70), encaminho o encerramento deste capítulo:
[...] os professores se formam na situação cotidiana de seu trabalho, nos contextos locais e momentos históricos particulares em que este se leva a cabo. Durante esses processos, os professores se apropriam de saberes historicamente construídos sobre a tarefa docente. Apropriar-se desses saberes implica uma relação ativa com eles: se reproduzem, se repelem, se reformulam e geram outros saberes a partir das situações pedagógicas concretas até as que enfrenta cada professor. (tradução nossa).
Concretamente, penso ser viável que a escola, como o locus da formação contínua de professores, abra suas portas para os professores aposentados, a fim de que eles possam, utilizando seus saberes da experiência, ajudar a construir a prática pedagógica de novos professores.
Saberes docentes
Para entender melhor essa relação entre o pensamento do professor e a construção da prática pedagógica, necessário se faz buscar nos estudos de Gauthier et al (1998) e de Tardiff (2007) a compreensão em torno dos saberes docentes. Para esses autores, os professores se abastecem, assim como constroem e mobilizam vários saberes para efetivação do ensino. Essa diversidade de saberes, reforça Gauthier et al (1998, p. 28): "[...] formam uma espécie de reservatório no qual o professor se abastece para responder a exigências específicas de sua situação concreta de ensino". Como se percebe, essa pluralidade de saberes (TARDIF, 2007) dá forma e conteúdo ao fazer docente, pois, à medida que engloba outros saberes, vai se completando e se ampliando com a experiência profissional, culminando a construção da prática pedagógica.
Na construção da prática pedagógica, especificamente de professores do ensino fundamental, não se podem deixar de lado esses saberes, até mesmo porque o trabalho docente não prescinde deles. O tempo de construção desses saberes é, ao longo da trajetória escolar, quer nos cursos de formação, quer no exercício profissional, a reflexão empreendida que ajuda o professor a definir o percurso de sua prática pedagógica. É desse resultado que se manifesta a experiência profissional, tão necessária ao trabalho docente.
Nesse sentido, a prática pedagógica do professor do ensino fundamental é marcada não apenas pelos saberes disciplinares, mas por um conjunto de experiências que se sucedem no contexto escolar durante toda uma trajetória profissional. A trajetória escolar do professor é composta de experiências novas, conhecimentos que se acumulam no percurso do caminho e de um saber-fazer que se aprimora a cada dia. E um outro aspecto que deve ser considerado é a experiência de aluno que cada professor guarda na memória. As lembranças da primeira professora, dos colegas de sala, dos castigos, das tomadas de lições, das brincadeiras, das festinhas compõem o quadro, juntamente com outras experiências, da experiencial profissional.
Convém, por essa razão, estabelecer uma linha de raciocínio que vincule a experiência profissional, os saberes docentes e a prática pedagógica à profissão de professor. Em se tratando de trabalho docente, a prática pedagógica, que se inclui entre o fazer docente diário, que, na sua essência, deve estar associada diretamente ao modelo de sociedade, imposto pelo modelo político e econômico. Nessa perspectiva, entendo que não há prática pedagógica neutra. O que existe é um reflexo daquilo que a sociedade imprime às instituições, dentre as quais se insere a escola.
Desse modo, a experiência profissional do professor encontra-se marcada por acontecimentos sociais e políticos, por necessidades pessoais, por inovações didáticas, por qualificação profissional, por tomadas de decisão, enfim, por uma série de atitudes e de ações através das quais vai adquirindo seu delineamento.
Considerações conclusivas
Dentro dessa visão, o que acontece com a prática pedagógica do professor do ensino fundamental é que ela se constrói no dia a dia do trabalho docente, mediante interferências internas e externas dos acontecimentos escolares. Essas interferências, às vezes conflituosas, promovem, no professor, a formação de sua personalidade profissional.
Nessa relação entre experiência profissional e saberes docentes, vinculados à prática pedagógica, interpõe-se um aspecto relevante: a formação do professor. Como tratar de questões relativas à prática pedagógica, à experiência profissional e aos saberes docentes sem a necessária vinculação à formação profissional? É dessa forma que a construção da prática pedagógica se manifesta como uma evolução do pensamento profissional do professor. Enfim, essa evolução profissional do professor tem relação com formação profissional e experiência profissional.
REFERÊNCIAS
BRITO, Antonia Edna. Formar professores: rediscutindo o trabalho e os saberes docentes. In: MENDES SOBRINHO, José Augusto de Carvalho; CARVALHO, Marlene Araújo de (Org.). Formação de professores e práticas docentes: olhares contemporâneos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da Pedagogia. Ijuí: Unijuí, 1998.
GHEDIN, Evandro. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica. In: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (org.). Professor reflexivo no Brasil: gêneseecríticadeumconceito. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
GIESTA, N. C. Cotidiano escolar e formação reflexiva do professor: moda ou valorização do saber docente. Araraquara: JM Editora, 2001
GUARNIERI, Maria Regina (Org.). Aprendendo a ensinar: o caminho nada suave da docência. 2 ed. Campinas, SP: Autores associados, 2003.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista brasileira de educação, nº 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr, 2002.
MERCADO, Ruth. Los saberes docentes en el trabajo cotidiano de los maestros. Infância e aprendizaje, México, n. 55, p. 59-72, 1991.
MONTEIRO, Silas Borges. Epistemologia da prática: o professor reflexivo e a pesquisa colaborativa. In: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gêneseecríticadeumconceito. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006.
PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (org.). Professor reflexivo no Brasil: gêneseecríticadeumconceito. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes & formação profissional. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
VEIGA, Ilma Passos (Coord.). Docentes universitários aposentados: ativos ou inativos? Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2007.
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