segunda-feira, 6 de junho de 2011

Método autobiográfico, histórias de vida e reflexividade na formação de professores

Nas últimas quatro décadas do século XX, nota-se, no Brasil, a evolução de um quadro complexo de luta dos professores e das entidades, que os representam, por uma educação de qualidade, em contraposição ao quadro de incertezas, indefinições e de apatia apresentado pelas instituições oficiais. Historicamente, todo esse quadro é possível ser descrito, através da vasta bibliografia que possuímos. No entanto, o que queremos definir em nosso trabalho não está nos livros de história da educação brasileira. O que queremos está no interior da pessoa do professor, que experimentou, em cada década, a convivência com alunos, com diretores, com pais, com a burocracia da escola, com a legalidade, com os regimentos, com a disciplina/e indisciplina, com autoridade/ e autoritarismo, com a aprendizagem, com notas, com aprovação/e reprovação, com os castigos físicos e psicológicos... É com esse interesse que utilizaremos como metodologias as narrativas autobiográficas, priorizando a história de vida de cada professor aposentado. Ao utilizar as histórias de vida de cada professor, enfatizaremos a importância das análises, das observações e das reflexões acerca de cada história feitas pelo pesquisador, que também é um professor e que tem a sua própria história de vida. A história de um não se confunde com a história do outro, mas apresenta situações similares e congruentes. Ou situações paradoxais, às vezes tão necessárias à construção de novas situações-realidade.
A história de vida do professor aposentado vai se decodificando na história e na experiência de vida do pesquisador. Essa decodificação será extremamente importante para a compreensão dos fatos narrados por cada professor. Isso não significa interferência do pesquisador na narrativa do professor, mas a compreensão do percurso da vida do professor que tanto deseja entender o outro como também a si mesmo. Para Galvão (2005, p. 330), a narrativa, como metodologia de investigação, implica uma negociação de poder e representa uma intrusão social na vida de outra pessoa. "Não se trata de uma batalha pessoal, mas é um processo ontológico, porque nós somos, pelo menos parcialmente, constituídos pelas histórias que contamos aos outros e a nós mesmos acerca das experiências que vamos tendo."

O começo da história

Trabalhar com o método autobiográfico e as histórias de vida de professores, em pesquisa educacional, é algo recente. As pesquisas qualitativas em educação, no Brasil, começaram na década de 80 do século XX, embora muito discreta e lentamente, como salienta Bueno et al. (2006, p. 388):
[...] a década de 1980 não foi prolífera em pesquisa com autobiografias e história de vida. A produção dos programas de pós-graduação expressa em resenha (período de 1985 – 90) registra a presença de apenas quatro trabalhos que utilizaram tais metodologias e, ainda assim, não voltados aos temas focalizados nesta revisão.
Na verdade, a tradição de pesquisa centrava-se na pesquisa quantitativa, com analises estatísticas de variáveis, voltadas para a precisão da objetividade, inspiradas numa visão mecanicista e positivista da modernidade. Para André (2005, p. 30): "Os estudos que nas décadas de 60 – 70 se centravam na análise das variáveis de contexto e no seu impacto sobre o produto, nos anos 80 vão sendo substituídos pelos que investigam sobretudo o processo." Considerar memórias, lembranças, relatos de vida, biografias, histórias de vida, narrativas memorialísticas como algo producente em pesquisa acadêmica, de caráter científico, foi algo que foi acontecendo muito lentamente, ganhando maior visibilidade a partir da década de 1990.
O caminho que se abriu para a utilização da subjetividade, através do método autobiográfico, começou a ser construído e a tornar-se conhecido em 1988, quando António Nóvoa, em parceria com Mathias Finger, publica O método autobiográfico e a formação. E, segundo Nóvoa (1995):
Em 1996, quando da primeira edição de Vidas de professores, a situação já tinha mudado consideravelmente, o que me leva a alertar contra a existência de práticas pouco consistentes e de metodologias sem qualquer rigor. Hoje, em 1995, o aviso deve ser escrito com letras ainda mais cheias.(NÒVOA, 1995, p. 9, apud BUENO et al., 2006. p. 387).

O objetivo

Não pretendemos, nesse trabalho, fazer um histórico sobre a evolução do método autobiográfico e das histórias de vida. É claro que conhecer como tudo começou é essencialmente importante para o pesquisador que deseja trabalhar com tais metodologias. O nosso objetivo é analisar o método autobiográfico, as histórias de vida e a reflexividade do professor como elementos necessários à formação continuada dos professores.

A análise
Sousa (2006) trata sobre história de vida e formação como arte de contar e trocar experiências. Aquilo a que já nos referimos anteriormente de que as relações entre as histórias de vida do professor e a história de vida do pesquisador confrontam-se, negam-se, confirmam-se, convergem-se, na verdade é apenas uma troca de experiência que dá vida e credibilidade à pesquisa educacional. Sousa (2006, p. 25), confirma que
As histórias de vida são, atualmente, utilizadas em diferentes áreas das ciências humanas e de formação, através da adequação de seus princípios epistemológicos e metodológicos a outra lógica de formação do adulto, a partir dos saberes tácitos e experienciais e da revelação das aprendizagens construídas ao longo da vida como uma metacognição ou metareflexão do conhecimento de si.
Sousa (idem) evoca o pensamento reflexivo, os saberes da experiência, o autoconhecimento e a auto-reflexão como elementos indispensáveis nos relatos pessoais de professores. Segundo esse autor, quem decide o que deve ou não ser contado é o próprio ator, a quem cabe o "dizível" da sua história, subjetividade e os percursos de sua vida. (p. 13). A subjetividade surge na pesquisa social como algo atraente e inovador. Diante de uma tradição de "ciência objetiva e globalizante (BUENO, 2002, p. 13), surge uma proposta cuja perspectiva central é a pessoa do professor, o seu "subjeto", as suas relações intra e extra-escolares. No entanto, o interesse pelos aspectos subjetivos envolvidos na vida dos atores sociais não é apenas preocupação da área da educação, é também motivado pelas mudanças paradigmáticas e às rupturas que se operam nas ciências sociais durante o século XX (BUENO, 2002). Diante a tendência atual de utilização de autobiografia ou histórias de vida, cabe a seguinte pergunta: como é possível a subjetividade das narrativas de professores tornar-se objeto de conhecimento científico? Bueno (2002) encaminha-nos para duas noções: a de práxis humana e de atividade sintética.
ou seja, à medida que para Marx "a essência do homem (...) é, na realidade, o conjunto de relações sociais (Marx, "VI Tesede Feuerbach", citado por Ferrarotti, 1988, p. 26), Ferrarotti conclui que toda práxis humana é reveladora das apropriações que os indivíduos fazem dessas relações e das próprias estruturas sociais, "interiorizando-as e voltando a traduzi-las em estruturas psicológicas, por meio da sua atividade desestruturante-reestruturante" (p. 26). Assim, mediante um processo de interiorização e exteriorização é explicitado o caráter dinâmico da subjetividade no âmbito de seu pensamento, de modo semelhante ao que essa questão foi abordada pela filosofia sartriana. Atribuir esse caráter à subjetividade significa, além disso, admitir que a vida humana e mesmo cada um de seus atos se manifeste como a síntese de uma história social. (BUENO, 2002, p 19).
Nessa perspectiva, entendemos que na história de vida de um professor, marcada fortemente pela subjetividade, subjaz a noção de sociedade, de coletivo. Mesmo o professor sendo uma pessoa, com características próprias e individuais, as suas relações sociais transformam a sua história na história dos outros e a história dos outros dentro da sua própria história. Burnier et al. (2007, p. 347) afirma que "a imagem que o professor constrói de si mesmo e perante a sociedade faz parte do processo constitutivo de sua identidade profissional". Queiroz (1988), sobre esta questão, salienta que
[...] não se nega mais também, que mesmo uma única história de vida possa ser objeto de um estudo sociológico aprofundado e frutífero. Todo fenômeno social é total, dizia Marcel Maus na década de 20. o indivíduo é também um fenômeno social. Aspectos importantes de sua sociedade e do seu grupo, comportamentos e técnicas, valores e ideologias podem ser apanhados através de sua história. (QUEIROZ, 1988, p. 28, apud BELLO, 2002, p. 26 e 27)
Goodson (2000, p. 67) entende que o estudo das histórias de vida dos professores tanto para a análise do currículo como da escolaridade é essencialmente importante. Ele afirma que é preciso "assegurar que a voz do professor seja ouvida, ouvida em voz alta e ouvida articuladamente." O que significa ouvir a voz do professor? Segundo Goodson (2000, p 71), ouvir a voz do professor é de grande interesse quando os professores falam do seu trabalho. O que ele se surpreende com as pesquisas educacionais é que os investigadores, durante muito tempo, tenham considerado as narrativas dos professores como dados irrelevantes. Não resta dúvida de que a objetividade científica, tradicional, mecânica tem contribuído para que a subjetividade não seja considerada elemento essencial na pesquisa. Por outro lado, a pesquisa educacional, nos últimos anos, buscou a experiência do professor, com fortes marcas de subjetividade, como um trajeto possível para se chegar à formação do professor, tanto como pessoa ou como profissional. Conforme Goodson (2000, p. 73),
As experiências de vida e o ambiente sociocultural são obviamente ingredientes-chave da pessoa que somos, do nosso sentido do eu. De acordo com o ‘quanto' investimos o nosso ‘eu' no nosso ensino, na nossa experiência e no nosso ambiente sociocultural, assim concebemos a nossa prática.
As histórias de vida dos professores têm-se constituído atualmente em matéria estudada não apenas pela educação, mas pela psicologia, pelas ciências sociais, pela história, entre outras ciências. Isso mostra que o método autobiográfico ou as histórias de vida ganhou status de cientificidade. É importante esclarecer que método autobiográfico e histórias de vida têm algo em comum, pois são relatos de vida, experiências acumuladas no dia-a-dia profissional. No entanto, diferem-se na forma. Para Miguel (apud BELLO, 2002, p. 31), as autobiografias são escritas, enquanto que as histórias de vida são narrativas orais. De acordo com esse mesmo autor, as autobiografias nunca têm fim, porque a história de vida de uma pessoa se amplia até o infinito e pode ser contada de várias maneiras, sofrendo novas interpretações. Já as histórias de vida apresentam marcadores, que são pontos de inflexão, momentos críticos, situações, que dão sentido e coerência à vida e que devem ser analisados pelo interlocutor. "Dar sentido à vida é um dos projetos típicos de uma história de vida e isso só acaba com a morte". (BELLO, 2002. p. 32).
Ainda, citando Miguel, Bello (2002, p. 32) enfatiza:
No que se refere às interpretações, [...] diz que existem três tipos de histórias de vida: aquelas cuja interpretação é feita pelo próprio leitor, aquelas que incluem uma interpretação sistemática do próprio entrevistado e aquelas que são utilizadas mais como um exemplo ou certificação de uma teoria ou de um texto.
Em pesquisa com professores aposentados há que se considerarem, pelo menos, os dois primeiros tipos de histórias de vida, pois as interpretações e análises de experiências serão fundamentais para a compreensão de suas práticas pedagógicas, tanto as feitas pelo entrevistado como pelo entrevistador-pesquisador. Interpretar as experiências do professor não significa dar-lhes conotação à subjetividade do entrevistador, ao contrário, significa mostrar as nuances e os percursos de uma vida, de forma imparcial, honesta e sensata, uma vez que "não temos acesso direto à experiência dos outros, lidamos apenas com representações dessa mesma experiência por meio do ouvir contar, dos textos, da interação que se estabelece e das interpretações que são feitas". (GALVÃO, 2005, p. 330).  De acordo com a autora, o método da narrativa é ideal para analisar histórias de professores, porque oferece meios de ouvir suas vozes e proporciona o entendimento da cultura, a partir do seu ponto de vista. (p. 331).
Elbaz (1990), citado por GALVÃO (2005, p. 331), aponta seis razões para considerar a narrativa um bom método de tornar públicas as vozes dos professores. Em cada uma delas é possível entender como a experiência torna-se algo capaz de transformar a realidade presente. De acordo com a opinião do autor, as histórias de vida: 1. revelam conhecimento tácito; 2. têm lugar num contexto significativo; 3. apelam à tradição de contar histórias, o que dá uma estrutura à expressão; 4. envolvem uma lição de moral a ser aprendida; 5. podem dar voz ao criticismo de um modo social aceitável; e, 6. refletem a não separação entre pensamento e ação no ato de contar, no diálogo entre narrador e audiência. Tudo isso credita ao método autobiográfico seriedade, criticidade e análise de contexto, proporcionando à pesquisa credibilidade, originalidade e autenticidade.
Reconstruir as histórias pessoais do professor e o seu envolvimento com os outros na escola contribui para a formação profissional daqueles que, pacientemente, ouvem as suas vozes. Maués (2003, p. 3) considera que a reconstrução de histórias pessoais, analisando aspectos educacionais, crenças, valores e normas, pode contribuir para melhorar qualitativamente a prática docente individual e, em conseqüência, a prática docente no sentido mais amplo. Citando Chizzotti (1996), a autora, estabelecendo relação entre histórias de vida e memória, deixa claro que a memória, embora desprezada por muitos e principalmente pelo paradigma da modernidade, não é um amontoado de fragmentos arruinados, mas é, sobretudo, o conjunto das descobertas e das diversas possibilidades e limites enfrentados que dão razão ao futuro e sentido ao presente. E enfatiza "a necessidade de estudá-la, compreendê-la e não desprezá-la, utilizando-a em nossas reflexões sobre nossas práticas buscando explicações e entendimentos que favoreçam práticas mais significativas à formação de futuros educadores". (p. 3). O que Chizzotti deixa claro é que
[...] a história de vida ou relatos podem ter a forma obrigatória onde o autor relata suas percepções pessoais, os sentimentos íntimos que marcaram a sua experiência, ou os acontecimentos vividos no contexto de sua trajetória de vida. Pode ser um discurso livre de percepções subjetivas ou recorrer a fontes documentais, as afirmações e relatos pessoais. (CHIZZOTTI, 1996, p. 47, apud MAUÉS, 2003, p. 4).
Considerar as histórias de vida, os relatos pessoais de professores como algo que passou e que se tornou obsoleto e ultrapassado é negar que o passado é sempre analisado no presente. As memórias estão presentes nas lembranças dos professores, que fazem reflexões, comparações, apontam situações semelhantes à realidade presente, realizam inferências do passado com a atualidade. Para Catani e Vicentini (2003, p. 16), "lembrar não é reviver, mas refazer, repensar, construir imagens e idéias de hoje as experiências do passado". O passado, quando trazido para o presente, transforma-se no diferente e, às vezes, até na novidade, principalmente quando a distância entre passado e presente oculta fatos, valores, metodologias, crenças e relacionamentos. Não se pode creditar ao presente a construção do futuro sem a anuência do passado. Paulo Freire, fazendo uso da memória e estabelecendo relação do que passou com o que passa, admite que
Quando hoje, tomando distância de momentos por mim vividos ontem, os rememoro, deve ser, tanto quanto possível, em descrevendo a trama, fiel ao que ocorreu, mas, de outro lado, fiel ao momento em que reconheço e descrevo, o momento antes vivido. Os "olhos" com que "revejo" já não são os "olhos" com que "vi". Ninguém fala do que passou a não ser na e da perspectiva do que passa. O que não me parece válido é pretender que o que passou de certa maneira devesse ter passado como possivelmente, nas condições diferentes de hoje, passaria. Afinal o passado se compreende, não se muda. (FREIRE, 2003, p. 19).
As histórias de vida de professores aposentados são relatos de vida e profissionalidade. A experiência de que são capazes de reproduzir é, na realidade, a construção de uma identidade pessoal e profissional. Os estudos de Schön (1992) apontam para três movimentos que contribuem para o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores. São eles: o conhecimento na ação, a reflexão na ação e a reflexão sobre a ação e sobre a reflexão na ação. Segundo Nóvoa (1992), esses movimentos produzem  momentos de balanço retrospectivo sobre os percursos pessoais e profissionais que, na verdade, são momentos em que cada um produz a sua vida, o que no caso dos professores é também produzir a sua profissão. Ora, toda história de vida é constituída não apenas de uma ação mas de várias ações. Recordá-las significa rever conceitos, práticas e pensamentos. O que o professor faz ao recordar suas ações pedagógicas? Refletir na e sobre a ação, como declara Schön (2007, p. 32): "Podemos refletir sobre a ação, pensando retrospectivamente sobre o que fizemos, de modo a descobrir como nosso ato de conhecer-na-ação pode ter contribuído para um resultado inesperado." Nessa reflexão, Schön utiliza-se de uma expressão de Hannah Arendt: "parar e pensar". Utilizando essa expressão como um dos fundamentos da metodologia a ser aplicada em nossa pesquisa, evocaremos as histórias de vida como um momento em que os professores contam – pensam – refletem, como um percurso em que caminharam e a ele retornaram anos mais tarde. Nessa perspectiva, a reflexão torna-se importante, porque o caminho não será mais o mesmo nem o professor é o mesmo. A riqueza de todo esse mergulho introspectivo da prática pedagógica fica disponível para uso na formação de novos profissionais.
A relação entre histórias de vida de professores e reflexividade pessoal e profissional torna-se, cada vez mais, estreita e interdependente, visto que produz uma nova perspectiva na formação continuada dos professores, principalmente daqueles em início de carreira. Considerada hoje como o lugar da formação continuada, a escola deve promover momentos de troca de experiências, incluindo aí as histórias de velhos professores, marcada principalmente pelo conhecimento adquirido no percurso da profissão. Nóvoa (2000) discute essa questão de forma bastante categórica:
Apesar de todas as fragilidades e ambigüidades, é inegável que as histórias de vida têm dado origem a práticas e reflexões extremamente estimulantes, fertilizadas pelo cruzamento de várias disciplinas e pelo recurso a uma grande variedade de enquadramentos conceptuais e metodológicos. Gaston Pineu (1990) refere a existência de um verdadeiro movimento socioeducativo em torno das histórias de vida, em uma enorme profusão de abordagens, que necessitam de um esforço de elaboração técnica baseada numa reflexão sobre práticas e não numa óptica normativa e prescritiva. É importante que este movimento socioeducativo continue a enriquecer-se em termos da acção, caminhando, todavia, no sentido de uma integração teórica que traduza toda a complexidade das práticas. (NÓVOA, 2000, p. 19).
A experiência do conhecer a si mesmo e do conhecer o outro fortalece o trabalho profissional. Na expressão "nós trabalhamos com os outros", sujeito e objeto se encaminham para a mesma direção. É o encontro do "eu" e do "tu" ou do "eu" e do "isso", como Buber (2003) estabelece nas relações do homem com o próprio homem e a natureza. "O TU encontra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado." (BUBER, 2003, p. 12). Daí nascem as relações e inter-relações entre as pessoas que, naturalmente, contribuem para a formação da nossa identidade como pessoa e como profissional. Cada vez mais estamos convencidos de que a formação do professor depende muito mais dele e de suas relações com outros profissionais da escola do que da formação acadêmica. É que a formação acadêmica, tal como é concebida hoje, volta-se mais para os conhecimentos teóricos prescritos por filósofos, pedagogos, psicólogos e outros do que para os conhecimentos curriculares, práticos, interdisciplinares, enfim para o conhecimento na ação como propõe Schön (2007). Ao sair da Universidade, o futuro professor se depara com um abismo que se interpõe entre o que ele estudou e o que ele vai encontrar na escola. Angústia, vontade de desistir, medo e insegurança tomam conta da pessoa do novo professor diante de uma realidade aparentemente conhecida, pois vivenciada como ex-aluno, mas completamente oposta àquilo que aprendera na faculdade. É preciso ultrapassar o abismo, barreira existente entre o teórico e o prático, entre o que se estudou e o que ainda precisa ser estudado. É preciso decidir
[...] se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vida dos novos e dos jovens. [...] se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2005, p. 247).
As contradições com as quais o professor se confronta, ao assumir a profissão, revelam o grau de incertezas e dúvidas que o esperam na escola. Eis mais um motivo por que a formação deve continuar – de forma muito mais intensa – dentro da própria escola. No entanto, uma outra questão se interpõe na busca dessa formação. Para Nóvoa (1992), a própria organização das escolas desencoraja um conhecimento profissional partilhado por professores, o que dificulta o investimento das experiências significativas nos percursos de formação. O que ele deixa claro é que a formação está indissociavelmente ligada à produção de sentidos sobre as vivências e sobre as experiências de vida. Nesse sentido, parece que o âmbito da escola se transforma em outro abismo que o professor iniciante precisa transpor.

A conclusão

A nossa intenção, ao refletir sobre essas questões, não é, como pode parecer, achar que o velho deva influenciar o novo, ou seja, que o professor iniciante, ao ouvir as histórias de velhos professores, se deixe influenciar por soluções práticas e mágicas. Como já afirmamos, educação é algo que acontece entre o passado e o futuro, como a vida, diferentemente de aprendizagem que acontece numa relação com o que passou. Não podemos esquecer, no entanto, que os encontros de professores com professores, partilhando seus conhecimentos, suas vivências e suas experiências transformam-se em momentos extraordinários de aprendizagem e de educação. Esse trabalho de inter-relações profissionais entre professores pode servir para um vir-a-ser do novo professor. É nesse sentido que entra a formulação de Dewey para o pensamento reflexivo. "Dewey denomina por pensamento reflexivo a melhor maneira de pensar e define-o como sendo ‘a espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e dar-lhe consideração séria e consecutiva'." (LALANDA; ABRANCHES, 1996, p. 45). Entendemos que não se trata de o velho influenciar o novo ou vice-versa, mas a questão da formação está naquilo que se pode extrair do outro, após examinar através do pensamento reflexivo, o que é pertinente para o seu trabalho. Não existe nenhuma relação com receituário, ou fórmula pronta para se aplicar na sala de aula, posto que, como reflete Arendt (2005, p. 239), "a qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo." Não se trata de uma visão individualista, egocêntrica, de cada professor por si, mas, sobretudo, é o coletivo do trabalho profissional influindo em cada um, sem necessariamente tirar a sua individualidade.
Alarcão (1996) admite que os professores desempenhem um papel importante na produção e na estruturação do conhecimento pedagógico. Isso porque refletem na e sobre a interação que se gera entre o conhecimento científico e a sua aquisição pelo aluno, refletem na e sobre a interação entre a pessoa do professor e a pessoa do aluno, entre a instituição escola e a sociedade em geral. Tudo isso reforça a idéia de que os professores não sejam apenas técnicos que executam normas e proponham receitas ou se preocupem apenas com a aplicação de teorias em seu trabalho profissional, mas que sejam também construtores de novos conhecimentos, principalmente advindos da ação, das relações e da convivência refletidas com outros profissionais da escola.
É assim que os relatos de vida dos professores podem contribuir para uma nova perspectiva de formação continuada na escola, pois "A construção e reconstrução do passado é importante para avaliar o papel social de cada um, inclusive dos professores como profissionais, naquele momento, uma vez que esse papel se transforma, assim com a sociedade que está em constante mutação." (BELLO, 2002, p. 44).
Querer que as coisas aconteçam naturalmente, sem a interferência dos atores, sem considerar as experiências de vida dos profissionais dentro e fora da escola é decretar a conservação de uma realidade imutável cujo papel principal é reproduzir uma sociedade autoritária e antidemocrática. Giesta (2001), em trabalho sobre a cotidianeidade da escola e formação reflexiva do professor, após entrevistas com professores e professoras, comenta:
A análise e a crítica das teorias e práticas docentes adquirem maior projeção quando realizadas em grupos de trabalho unidos pelo objetivo de discutir as ações escolares e sua influência na educação dos alunos. A reflexão na e sobre a ação docente propicia reação individual e coletiva, mas tal reação deve isentar-se de apenas encontrar justificativas no exterior da prática de ensino, devendo principalmente identificar acertos e sucessos que elevem a auto-estima do professor; assim como, as lacunas, omissões, falhas para que sejam buscados procedimentos de superação de tais questões. (GIESTA, 2001, p. 24).

"Procedimentos de superação para tais questões", repetindo as palavras de Giesta (2001), é o que falta acontecer dentro e fora das escolas. Ouvir professores, suas histórias, seus sucessos e fracassos, suas certezas e incertezas, seus conhecimentos teóricos, suas experiências de vida e de escola, é dar lugar à participação, ao diálogo, é romper barreiras burocráticas (tão vilmente usadas na escola), é permitir que novos e velhos professores interajam na perspectiva de abrir novos caminhos.

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